quarta-feira, 9 de julho de 2014

É preciso limpar os olhos.

Por detrás da cortina,
com mãos inertes
deixa-se de viver o dia.





Não acordamos mais tão cedo quanto antes, alias não me lembro a quanto não vejo o sol nascer atrás de alguma montanha ao longe, tenho perdido todos esses espetáculos diários, não sei bem se a palavra correta é perder, acho que não. Tenho na verdade escolhido não assisti-lo, trocando-o pela doce escuridão atrás dos meus olhos, onde algumas vezes, sem o meu controle coisas maravilhosas acontecem. Fantasias me transportam para mundos deslumbrantes com pessoas que não estão tão próximas, outras que nem mais estão aqui e até algumas as quais nunca vi, mas sinto que verei. O meu mundo de fantasia dos sonhos é doce e quase nunca me assusta. Saio dele quase sempre com boas sensações e quando alguma ruim aparece trato logo de deixá-la de lado para que uma outra boa venha.

Ainda no mundo de fantasias sinto uma ponta de calor tocar um dos meus olhos. Sinto como se uma pequena criatura com mãos menores ainda agarrasse a pálpebra de um dos meus olhos e se apoiando no globo do meu olho a puxa para cima com insistência e contra a minha vontade, tento lutar contra fazendo com que meus olhos não se abram, mas apesar de pequenina a criaturinha é forte e meu olho se abre. A ponta de calor que forçava essa abertura agora não só aquece, mas penetra em mim com uma luz intensa que vem do alto. Não há o que fazer a não ser despertar e abandonar o mundo de sonhos e fantasias. Do alto da abertura do teto vejo a flecha de sol que invade impiedosamente o quarto e ela é reta e direta no meu olho. Tiro a cabeça um pouco para o lado e me livro dela que resolve então incomodar o colchão sob mim. Ele diferente de mim não arreda o pé e os dois travam uma luta até que discretamente a flecha de luz começa a se mover em busca de alguma outra vitima quase deixando-o em paz em seu leito preguiçoso. Sem mais tempo para os dois me ponho de pé rumo a mais um dia de peregrino. Hoje sigo a La Faba, uma caminhada leve que nos deixará descansados para o Cebreiro, mais um grande ponto do caminho. Tenho a impressão de que La Faba é um lugar meio mágico, a palavra Faba me lembra Fabula e estou ansioso para lá chegar.

Logo depois de um belo e gentil café da manhã deixamos Rato e o místico albergue Ave fênix. Saímos todos com agasalho de chuva, uma leve garoa deixava a manhã úmida e fresca. O sol timidamente ousava surgir vez-ou-outra atrás de alguma nuvem. Atravessamos a cidade seguindo as setas amarelas espalhadas por ela. Como em todas as outras cidades elas nos conduzem de forma gentil e objetiva até a estrada que nos levará ao nosso próximo destino e logo após a ponte de pedras avistamos as próximas setas no chão que nos conduzem a rodovia, porém um grupo de peregrinos vem em sentido contrário ao nosso e nos informa que aquele não é o caminho correto, que o caminho certo é o pela montanha. Não os questionamos e os acompanhamos montanha acima.

O dia ainda estava no inicio, mas não parecia nada leve, a ascensão rumo ao topo da montanha era muito intensa, mais do que eu imaginei para um dia leve. O inicio da subida tinha varias residências cravejadas na montanha e do terraço de uma delas uma senhora com gatos nos acena desejando-nos boa sorte e força. 

O incentivo da senhorinha me ajudar a subir mais tranqüilo a colina. Puri vem logo atrás, ela reclama um pouco da subida, eu havia dito para ela que teríamos um dia leve hoje. E eu até concordo com ela, de leve até agora não tivemos nada.

A subida íngreme custa mais para o corpo do que eu pretendia gastar hoje, era para ser um dia leve e não entendo bem o que está acontecendo, mas vou me entretendo com Pedro e Orlando que continuam animados a minha frente. Quanto mais subimos mais úmido o ar vai ficando e também mais fresco. Depois de todos esses dias sinto que meu condicionamento físico encontra-se muito melhor, pois apesar do esforço e do cansaço dos músculos das pernas meu corpo não tem suado muito, o que é ótimo em dias assim, pois ficar encharcado embaixo de algumas camadas de roupas em dias frios é terrível, experimentei isso no inicio do meu caminho e não quero viver de novo, para continuar assim subo em um ritmo tranqüilo. E essa consciência de respeitar um limite para promover um bem estar tenho a oportunidade de começar a observar a dura montanha a qual ainda subimos.

O esforço extra faz com que os pulmões trabalhem mais para levar oxigênio aos músculos das pernas que vigorosamente me conduzem cada vez mais alto, e esse oxigênio extra que entra pelos pulmões passa pelo olfato e quando deixo de pensar no esforço que faço para superar mais esse desafio começo a sentir o doce aroma daquela montanha. Percebo que ela exala múltiplos perfumes que se combinam de forma harmônica e a medida que caminho suas tonalidades se intensificam ou se dissipam e outras novas aparecem. Essa essência é extraída das delicadas flores de tom lilás que a adornam; dos vultuosos arbustos brancos que se enfileiram por ela; além destes as flores de cor amarela dão um tom dourado e glamoroso que se estende por todo seu paredão que desce e oscila em ondas até a base onde posso ver a cidade; as de cor rosa são as em menor numero, porém as mais delicadas e ficam salpicadas entre as outras como se estas ultimas fossem seus guarda-costas abrindo passagem para que elas flutuassem com leveza; por ultimo noto as azuis, mais raras, mas tão belas quanto todas as outras e então me vejo flutuando nessa harmonia orgia-olfativa e percebo então que vivo em uma obra de arte retratada por Monet, mas executada pelo Grande Arquiteto do Universo, pois somente Ele seria capaz de colocar tanta delicadeza, tanta doçura e tanta beleza a nossa frente e somente o homem seria capaz de oculta-la atrás de uma cortina tênue desdém pelo que pode ser rotineiro. Percebo ali que é preciso limpar os olhos todos dias para voltar a ver a beleza do cotidiano com "o olhar de um apaixonado e a curiosidade de uma criança".

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Música sem voz



“...tudo parece um pasto sem fim, mas existe uma beleza diferente nesses pastos, uma beleza que está a vista de quem escolhe enxergar, a pastagem de verde intenso é cravejada por flores delicadas e singelas de cores amarelas e brancas. As flores salpicadas inadvertidamente na pastagem criam belas pinturas a céu aberto; céu de azul intenso e com sol radiante, um sol com raios gentis que não queimam a pele, que geram calor apenas o suficiente para trazer aconchego na manhã fria.

   O som da natureza é vivo, mas distraído só ouço o som das botas que prensam as pedras contra o solo e produzem um som ritmado que me embala. Não demora muito e o ouvido se aguça e começo a ouvir outros sons. Um pássaro canta uma canção que logo é respondida por outro que segue em um mesmo tom. Aqueles pássaros são mais tagarelas do que os que conheço. As canções são mais complexas e longas. Junto com os pássaros um rio largo surge e surge com força trazendo um novo som grave aos assobios agudos e juntos passam a cantar em harmonia. Logo depois da entrada do rio na sinfonia sinto a brisa me tocar com suavidade a face e ela também sopra seu instrumento formado por grandes arvores, arbustos e folhagens e de repente me vejo em meio a apresentação de uma orquestra ritimada e harmonica na qual meus passos marcados começam a se encaixar e o maestro Universo nos  conduz com perfeição. No embalo da sinfonia a mente se esvazia e se aquieta e pela primeira vez apenas caminho...”